24.8.05

Esse cão...

Hoje, na matina de sempre, sentei no banco onde estava o senhor Afonso.
Manhã quente, a sombra do parque e a brisa calma da idade.
Assim que me sentei no banco do senhor Afonso ele me perguntou:
- Já reparou nesse vagabundo?
Na nossa frente, bem no pé da árvore, qual bebé no colo da mãe, um cão pequeno, de um aspecto muito sujo, se deliciava em sua sesta.
- Dá até inveja - disse eu, vendo o relaxamento do rafeiro em sua sombra, parecia até que ali, bem onde ele estava, era o sítio mais fresco do parque, até de todo o mundo. Seus pêlos compridos pareciam até ondular numa brisa que só por ele passasse.
- Tem inveja? Inveja do quê? - perguntou o senhor Afonso.
- Olhe bem para ele - lhe respondi eu - não tem nem com que se preocupar, não tem de trabalhar, não paga imposto, não dá satisfações pra ninguém, dorme até numa sombra pequena, e com as pessoas que vão passando no parque sobra sempre um resto de comida pra ele.
- E já pensou no Inverno? - perguntou-me o senhor Afonso com sua voz de lobo do mar. Na verdade o senhor Afonso sempre havia trabalhado na repartição de finanças, onde era bem apreciado por colegas e utentes devido à sua simpatia e capacidade de ver sempre além do problema. Agora, na reforma, o senhor Afonso passava as suas manhãs no parque, de camisa havaiana e calção, o que em conjunto com sua barba branca lhe dava o aspecto de um eterno mareante.
- No Inverno sempre encontra abrigo em alguma ponte ou prédio abandonado. Aí é que começa o problema. Como ninguém lhe dá comida, vai revirando as latas do lixo, deixando tudo espalhado.
É sempre assim, todos os anos, e cada vez são mais. Invadem centros comerciais, entram nos cafés, onde quer que lhes cheire a comida...
- Não será antes para cheirar a misericórdia humana? - indagou-me o senhor Afonso.
- Nada disso senhor Afonso - lhe retorqui eu - O senhor é que vê tudo com poesia. Nós é que temos que aguentar o cheiro deles, imundos de revirar latas do lixo, afastam até a clientela quando ficam plantados na porta de qualquer restaurante. O pior é que o estrangeiro, turista, também vê e cheira como nós, e vendo esses desgraçados por todo lado, que vai ele pensar? Que vai ele dizer quando voltar pra terra dele?
- Se calhar tem razão - anuiu o senhor Afonso - é uma vergonha para a nossa terra. Mas vergonha por nós homens, que o constituimos e que encontramos no abandono a melhor solução para um companheiro que não queremos mais ver.
- Sabe que lhe digo senhor Afonso, mais valia levá-los a um sítio onde sua vida pudesse ter um fim menos vergonhoso.
- Vergonhoso pra quem? - questionou meu colega de banco.
- Vergonhoso pra nós senhor Afonso, eles não têm vergonha. Sempre foram assim. se habituaram.
- Se calhar fomos nós que nos habituamos a deixá-los assim. Não são pra nós mais que esse cão encostado na árvore. Já não damos nem por eles.
Aí eu reparei numas sapatilhas velhas, rasgadas, que principiavam um corpo deitado detrás de um arbusto bem perto do banco.

9 Comments:

Blogger Nina said...

Obrg pela tua visita ao meu blog :)

Gostei do texto...

Beijinho e um abraço :)

3:18 da tarde  
Blogger SL said...

Obrigada pelo aplauso. Sinto muito satisfeita por alguém que escreve assim, como este texto é exemplo disso, aplaude as minhas humildes tentativas de escrever.
Jinho

3:23 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois é... há uma linha muito ténue entre o homem e o animal... a diferença está, na forma como a vida lhe corre...
Bom texto. Gostei ;)

3:35 da tarde  
Blogger lobices said...

...agradeço e retribuo a amável visita
abraço

6:11 da tarde  
Blogger Paulo Figueiredo said...

fomos nós que nos habituamos...

12:12 da manhã  
Blogger Paula said...

Gostei do texto... muito interessante!

8:13 da manhã  
Blogger Lia Noronha said...

O homem é confundido com um animal,e algumas vezes consegue agir como tal.
Os valores humanos estão se perdendo pelos caminhos da vida!
Abraços.

4:22 da tarde  
Blogger Fallen_Angel said...

olá..
obrigado por teres passado lá pelo meu cantinho, espero te ver por lá mais vezes.

respondendo a tua pergunta, as jornadas sao 5estrelas, expectaculares, altamente msm. nao te conxigo explicar, mas acnxelho toda a gente a ir aquilo é simplesmente sem palavras.

fica aqui o convite em 2008 sao na Australia (Sidney) pq nao experimntas??? :O)

já agora qt ao post ta muito bom :O) apesar de retratar a mais pura verdade, mas pelo lado negativo.

voltarei
bjinho

5:10 da tarde  
Blogger Cristina said...

Olá Currupio,

Obrigada pela tua visita ao meu mundo :)
Vou voltar com mais calma para ler tudo acerca do teu jardim
Um beijinho e prazer
:)

10:05 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home